Confusão patrimonial justifica desconsideração inversa da personalidade jurídica

Leandro Amorim Coutinho Fonseca

A discussão sobre a aplicação, ou não, do instituto da desconsideração inversa da personalidade jurídica toma como base a interpretação sistemática do art. 50 do Código Civil[1]. Basicamente, a aplicação do instituto nos termos do referido art. 50 do CC materializa-se quando fica constatada que determinada sociedade perde a autonomia sobre seus ativos, de modo a atingir diretamente o seu patrimônio social responsabilizando a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador, e não o contrário.

Em outras palavras, o objetivo do art. 50 do CC é coibir a utilização fraudulenta de uma sociedade por seus sócios, o que pode ocorrer também, claramente nos casos em que o sócio controlador, com intenção de fraudar terceiros, esvazia seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, gerando uma confusão patrimonial. Assim, fica evidente ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a alcançar os bens e ativos da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo seu sócio controlador, desde que comprovados o desvio de finalidade e confusão patrimonial em detrimento do interesse da própria sociedade e/ou com prejuízos a terceiros, nos termos da lei.

Assim, a desconsideração inversa da personalidade jurídica como medida protetiva contra o abuso de direito e fraude a negócios foi analisada em recente decisão da terceira turma do Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Especial, confirmando, de forma unânime, que a confusão patrimonial e o desvio de finalidade constatados no processo de origem justificam a desconsideração inversa da personalidade jurídica.

No caso em julgamento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo e restabeleceu a decisão proferida pelo juízo de primeira instância, para deferir o pedido de desconsideração inversa da personalidade jurídica e incluir a sócia controladora da sociedade ré no polo passivo de ação de execução de título extrajudicial.  

Vale destacar que a decisão do juízo monocrático identificou que a sociedade ré foi constituída com a finalidade de se esquivar dos bloqueios judiciais e do pagamento de suas obrigações, frustrando a pretensão do autor/credor.

Não obstante a sentença de primeiro grau ter sido reformada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, a decisão foi mantida pelo STJ, que entendeu, por meio de interpretação teleológica do Artigo 50 do Código Civil, estarem presentes os requisitos autorizadores da desconsideração inversa da personalidade jurídica, quais sejam: confusão patrimonial e desvio de finalidade. Confusão patrimonial, pois todos os recursos oriundos da Sociedade ré estariam sendo alocados na sociedade controladora, havendo flagrante desvio de finalidade dos interesses sócias e prejudicando a pretensão de terceiros em ter seu crédito satisfeito.

Com efeito, a decisão do STJ foi bastante acertada, vez que o tribunal superior não se ateve apenas à interpretação literal da lei, preocupando-se especialmente com os seus efeitos e consequências. Isso porque, referida decisão teve como escopo a coibição de práticas fraudulentas, que desvirtuam a função social das entidades, utilizando-as como veículos para a fraude de credores ou fraude à execução.

A decisão do STJ tomou como base uma interpretação sistemática e ampla do Artigo 50 do Código Civil, portanto, buscando alcançar a finalidade para a qual a norma foi criada e, sobretudo, proteger o bem jurídico tutelado por esta norma. Assim, se de um lado no instituto da desconsideração da personalidade jurídica há a retirada do véu entre o sócio e a sociedade, para que ele/sócio responda com o seu patrimônio pelas obrigações assumidas, de outro, na desconsideração inversa é o patrimônio da sociedade que é chamado a responder pelas obrigações contraídas pelo sócio controlador. O que é comum em ambos os casos, é o mecanismo de combate aos abusos no uso da pessoa jurídica e à prática de fraude.

Em contrapartida, não foi este o posicionamento do juízo de segunda instância ao reformar a decisão monocrática. Há uma corrente doutrinária que defende que a desconsideração é consequencialista, intentando atingir tão somente os efeitos práticos da decisão judicial, distanciando-se do letra fria da lei, especificamente do art. 50 do Código Civil. Como exemplo e forma de ilustrar o argumento, essa corrente indica que inúmeras são as críticas quanto aos resultados da desconsideração inversa, tais como: conflitos societários entre minoritários e controladores, desequilíbrio no âmbito do Conselho de Administração entre representantes de minoritários e controladores, exigência de reforço nas garantias por parte dos bancos, entre outros.

Em complemento, essa corrente sustenta que a desconsideração da personalidade jurídica não observa os direitos constitucionais do contraditório e ampla defesa. E essa afirmação vem acompanhada do argumento de que, contra as fraudes perpetradas, já existem normas positivadas e as respectivas ações cabíveis. É certo que no caso de fraude contra credores, seria cabível a ação pauliana; e que para a fraude à execução o remédio seria a declaração de ineficácia do ato de transmissão da propriedade nos autos da execução; ou que a simulação para lesar terceiros pode ser sanada com um pedido de nulidade ou anulabilidade do ato.

Entretanto, em que pese os argumentos dessa corrente doutrinária, há que se destacar que a diferença entre as ações supramencionadas e a desconsideração da personalidade jurídica, reside na celeridade no atendimento da pretensão do autor. Enquanto as demais ações exigem um processo de conhecimento e a obtenção de um título executivo judicial (sentença), a desconsideração da personalidade jurídica pode ser uma causa de pedir deferida pelo juiz quando da análise dos pedidos da exordial, ou no decorrer de um processo de execução, desde verificados os requisitos legais.

Ademais, com o advento do Novo Código de Processo Civil (Novo CPC), não é mais possível sustentar o argumento de que a desconsideração da personalidade jurídica fere o direito ao contraditório e ampla defesa, uma vez que referido diploma traz em seu bojo a positivação do instituto, bem como o procedimento a ser observado após a instauração do incidente. Ressalta-se, que a redação do Artigo 135[2] do Novo CPC determina a citação do sócio ou da pessoa jurídica para apresentar manifestação e fazer provas no prazo de 15 dias, restando induvidosa a observância dos direitos constitucionais do contraditório e ampla defesa.

Com relação ao acórdão proferido pelo STJ no caso em tela, apesar de a lide em destaque ter ocorrido sob a vigência do Código de Processo Civil de 1973, quando o incidente de desconsideração ainda não havia sido positivado, é de se afirmar que a decisão do tribunal superior permanece acertada. Isso porque, restou comprovada a fraude perpetrada pela sociedade ré para o repasse de valores, em flagrante fraude à execução.

Ante o exposto, conclui-se que a decisão unânime do STJ sobre a desconsideração inversa da personalidade jurídica, corroborou que esse instituto é o meio mais adequado a ser utilizado para a coibir eventuais fraudes e abusos no uso da pessoa jurídica. Adicionalmente, não podemos deixar de mencionar a previsão expressa ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica, conforme positivado pelo Novo CPC – o qual assegura às partes os direitos constitucionais do contraditório e a ampla defesa – de modo que temos no instituto um meio eficaz e célere para a coibição de fraudes práticas fraudulentas envolvendo pessoas jurídicas, bem como para a resolução de conflitos nessa mesma seara.

[1] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

[2] Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.